Mahāśivarātri - A Grande Noite Auspiciosa
- Yuri Wolf
- 21 de fev. de 2020
- 7 min de leitura
Hoje, dia 21 de fevereiro, celebra-se o grande festival Mahāśivarātri.
Trata-se de uma das datas mais importantes do hinduísmo, especialmente dentro da linha śivaíta – a tradição hindu que coloca o Senhor Mahādeva como figura central do panteão.

O Auspicioso.
Dentre as muitas versões disponíveis para explicar a simbologia ritualística desta celebração, o objetivo principal do festival é o direcionamento da mente junto à essência divina d’Aquele que tem a chave para a transcendência do ego (a consciência individual dual e limitada) e para a liberação espiritual, em função das virtudes do sacrifício, da compaixão e da devoção.
É um período de breve intervalo entre a destruição e a criação. A partir de um processo de profunda introspecção, nos oferece a honra de contemplar, junto à misericórdia do Senhor Śiva, os motivos de nossa decadência. Identificando, pois, tanto o que precisa ser erradicado de nossos corações, como as virtudes necessárias para que possamos alcançar mokṣa– a liberação última.
As principais atividades da celebração incluem o jejum, o abhiṣeka (banho dhármico) de śivaliṅgas, e a vigília durante toda a madrugada em meditação junto à entonação do pañcākṣarīmantra (o mantra das 5 sílabas sagradas: oṃ namaḥ śivāya), juntamente à pūjā, ofertando itens como:
- pasta kumkum: usada nas tilakas (marcas nas testas dos devotos, conhecidas também como bindus), e que representa as virtudes buscadas;
- frutas: representam a longevidade e a concessão dos desejos;
- incensos: purificação e riqueza;
- lamparinas: obtenção do conhecimento;
- folhas de Bael (ou marmeleiro-da-Índia): purificação da alma.

Tradicional Mahābhiṣeka das śivaliṅgas no Lalibaba Āśrāma, como celebração da Mahāśivarātri na cidade de Vārāṇasī.
A data em questão está profundamente ligada aos ciclos lunares, considerando a absoluta importância de Candra, um dos muitos nomes da Lua, para nosso planeta. Controla, por exemplo as marés e os ciclos de fertilidade; e assim, consequentemente, os processos emocionais de nosso planeta.
Em todos os meses, a décima quarta noite do calendário lunissolar hindu é chamada de Śivarātri – em sânscrito, a “noite do Senhor Śiva”, ou a “noite auspiciosa” – a noite mais escura do mês.
É assim identificada devido ao ciclo descencional da Lua, que diminui nos catorze dias conseguintes à Lua Cheia, até mostrar-se apenas como um delicado traço no firmamento, durante sua fase minguante.
Dentro da cultura védica, a Lua é considerada a representação da alma em interação com a matéria, considerando que a mesma não emite luz própria, mas sim o reflexo da luz de Sūrya (o Sol).
Consequentemente, é também a Deidade que governa a mente humana, representando o ego.
Desta forma, a força da simbologia ióguica das Śivarātris encontra-se no dia do mês em que a Lua exerce menor influência sobre os processos emocionais no planeta, o Caturdaśī. É o apogeu do ciclo descendente face ao materialismo, com forte atração ascendente para a unidade divina, que revela as distorções do ego diante da realidade.
Sendo assim, durante o Phālguna (mês equivalente ao período que varia entre fevereiro e março, no calendário gregoriano), temos o último Caturdaśī do inverno, que remete a um processo ainda maior de profunda reflexão. Destarte, nesta noite é celebrada a Mahāśivarātri, a “Grande Noite do Senhor Śiva” ou a “Grande Noite Auspiciosa”.
Há diversas versões que remetem às raízes deste festival. Dentre as mais famosas, está o casamento do Casal Cósmico, Śrī Śiva e Śrī Pārvatī, que já foi previamente explorada e pode ser encontrada em detalhes aqui.
Outra versão bastante popular contida nos Purāṇas elucida o motivo pelo qual a vigília é parte primordial das atividades da Mahāśivarātri.
Esta é conhecida como Samudra Manthana (a “Agitação do Oceano”) e envolve um disputa entre os Devas e os Asuras em um processo similar à agitação do leite para a obtenção de manteiga. Todos reuniram-se junto ao Oceano Causal (feito de leite em seu estado mais puro) com o objetivo de obter o néctar da imortalidade (um subproduto do processo de agitação do leite, em analogia à manteiga).
Para tal, era necessário agitar o Oceano, utilizando o Monte Mandāra como haste e Śrī Vāsuki Naga, o Rei das Serpentes, como corda. Diversas ervas foram adicionadas à mistura e então diversos subprodutos emergiram do Oceano Causal, incluindo um poderosíssimo veneno capaz de destruir toda a Criação.
Com o objetivo de prevenir uma possível desgraça, clamaram pela misericórdia do Senhor da Destruição, Śrī Śiva. Ele prontamente bebeu e veneno que, por provisão de Śrī Pārvatī, ficou retido em sua garganta. Tamanha a potência do veneno, tingiu sua garganta de azul, o que lhe conferiu o nome de Nīlakantha (Aquele que tem a garganta azul).
Como parte do processo de cura, Śrī Śiva deveria não poderia dormir naquela noite. Assim, todos se concentraram no processo de devocional Àquele que havia salvado toda a Criação, estabelecendo a Mahāśivarātri.
Mahāśivarātri no śivaísmo não-dual da Caxemira
Para este que vos escreve, dentre as infinitas tradições filosóficas que compõem o que é chamado de śivaísmo, a escola monista tântrica caxemire – também conhecida como Trika – é a mais proeminente.
Desta forma, uma postagem mais elaborada sobre o tema será desenvolvida em breve.
Dentro desta tradição mística, que indica que toda a multiplicidade universal possui uma única fonte (daí o termo “monista”), e cuja meta máxima é o reconhecimento da essência da alma individual (o “eu” limitado) como a pura Consciência Universal (o “Eu” infinito), a Mahāśivarātri representa a ascensão da segunda diante da primeira, dentro do processo cognitivo do adepto, num processo interno de absorção.

Altar sacrificial de um Mahāmṛtyunjaya Homam, ritual do fogo realizado durante a madrugada da Mahāśivarātri em vigília.
Por fim, seguem algumas auspiciosas entoações mântricas para a noite mais auspiciosa do ano.
महामृत्युंजय मन्त्र mahāmṛtyuṃjaya mantra(mantra da grande superação da morte)
ॐ त्र्यम्बकं यजामहे सुगन्धिं पुष्टिवर्धनम् ।
उर्वारुकमिव बन्धनान्मृत्योर्मुक्षीय मामृतात् ॥
oṃ tryambakam yajāmahe sugandhim puṣṭivardhanam ।
urvārukamiva bandhanān mṛtyormukṣīya māmṛitāt ॥
“Reverenciamo-nos ao Senhor de Três Olhos, cuja fragrância alimenta e nutre todos os seres.
Como o pepino amadurecido – com a intervenção do jardineiro – é liberado de seu cativeiro, que Ele possa nos liberar da morte, guiando-nos à imortalidade.”
पञ्चाक्षरीमन्त्र
pañcākṣarīmantra (mantradas 5 sílabas sagradas)
ॐ नमः शिवाय
oṃ namaḥ śivāya
“Reverências ao Auspicioso.”
श्री भैरव स्तव
Śrī Bhairava Stava - composto pelo grande yogin, filósofo e santo caxemire Abhinavaguptācārya.
व्याप्तचराचरभावविशेषं चिन्मयमेकमनन्तमनादिम् । भैरवनाथमनाथशरण्यं त्वन्मयचित्ततया हृदि वन्दे ॥१॥
vyāpta-carācara-bhāva-viśeṣaṃ cinmayaṃ ekaṃ ananta-manādim । bhairava-nāthaṃ anātha-śaraṇyaṃ tvan maya citta tayā hṛdi vande ॥1॥ "Eu, Abhinavagupta, com devoção unidirecionada, rogo ao Supremo e onipresente Senhor Śiva, presente nos princípios animados e inanimados, e que por meio de Sua realização revela-Se como o ilimitado Senhor Bhairava, protetor dos desamparados."
त्वन्मयमेतदशेषमिदानीं भाति मम त्वदनुग्रहशक्त्या । त्वं च महेश सदैव ममात्मा स्वात्ममयं मम तेन समस्तम् ॥२॥ tvan-mayaṃ etad-aśeṣa-midānīṃ bhāti mama tvad-anugraha-śaktyā। tvaṃ ca maheśa sadaiva mamātmā svātmamayaṃ mama tena samastam ॥ 2॥| "Pela energia de Sua graça, me foi revelado que este vibrante Universo é Sua própria existência. Assim, ó Senhor Śiva, esta percepção me permite realizar que Você é minha própria alma e assim este Universo é a expressão do meu ser e da minha existência."
स्वात्मनि विश्वगते त्वयि नाथे तेन न संसृतिभीतिकथास्ति । सत्स्वपि दुर्धरदुःखविमोह त्रासविधायिषु कर्मगणेषु ॥३॥ svātmani viśvagate tvayi nāthe tena na saṃsṛti-bhīti-kathāsti । satsvapi durdhara-duḥkha-vimoha- trāsa-vidhāyiṣu karma-gaṇeṣu ॥3॥ "Ó, controlador de tudo, ainda que seus devotos, presos pelo karma e suas mentes condicionadas, sejam pegos pela rede do destino que atrai o sofrimento e a escravidão, eles não temem as perturbações e a febre deste mundo. Tendo realizado este Universo como sua própria existência, não temem as dificuldades mundanas pois o medo só existe quando há alguém para infligi-lo. Porém, quando não há ninguém além de Você, como pode o medo surgir?"
अन्तक मां प्रति मा दृशमेनां क्रोधकरालतमां विनिधेहि । शङ्करसेवनचिन्तनधीरो भीषण भैरव शक्तिमयोऽस्मि ॥४॥ antaka māṃ prati mā dṛśamenāṃ krodha-karāla-tamāṃ vinidhehi । śaṅkara-seva-nacinta-nadhīro bhīṣaṇa bhairava śakti-mayo'smi ॥4॥ "Ó, Senhor Antaka (o Anjo da Morte), não recaia seus olhos odiosos e assustadores sobre mim, pois estou sempre absorvido na adoração do Senhor Śiva. Por meio da devoção incessante, meditação e reflexão, me tornei estável e corajoso, uno com a energia do terrível Bhaivara. Assim, estes olhares não me causam mal algum."
इत्थमुपोढभवन्मयसंवि द्दीधितिदारितभूरितमिस्रः । मृत्युयमान्तककर्मपिशाचै र्नाथ नमोऽस्तु न जातु बिभेमि ॥५॥ itthaṃ upoḍha-bhavan-maya-saṃvid- dīdhiti-dārita-bhūritamisraḥ । mṛtyu-yamāntaka-karma-piśācair
nātha namo ̕stu na jātu bibhemi ॥5॥
"Ó, Senhor Bhairava, que me acordou para a realização de que tudo que existe é somente Você, eu o saúdo! Como resultado deste despertar, a escuridão da minha mente foi destruída e agora não temo demônios ou Yama, o temível deva da morte."
प्रोदितसत्यविबोधमरीचि प्रेक्षितविश्वपदार्थसतत्त्वः ।
भावपरामृतनिर्भरपूर्णे त्वय्यहमात्मनि निर्वृतिमेमि ॥६॥ prodita-satya-vibodha-marīci- prekṣita-viśva-padārtha-satattvaḥ | bhāva-parāmṛtanir-bhara-pūrṇe tvayyahamātmani nirvṛti-memi ॥6॥
"Ó, Senhor Śiva, é por meio de Sua existência, revelada a mim por meio do verdadeiro conhecimento, que percebo que todos os apegos e tudo o que existe neste Universo, é manifestado por Você. Neste despertar, minha mente é inundada com imortal devoção, e assim experimento o supremo regozijo."
मानसगोचरमेति यदैव
क्लेशदशाऽतनुतापविधात्री ।
नाथ तदैव मम त्वदभेद
स्तोत्रपरामृतवृष्टिरुदेति ॥७॥
mānasa-gocaraṃ-eti yadaiva
kleśa-daśā ̕tanutāpa-vidhātrī ।
nātha tadaiva mama tvada-bheda
stotra-parāmṛta-vṛṣṭi-rudeti ॥7॥
"Ó Senhor, por algumas vezes sinto a angústia que atormenta minha mente, mas no mesmo instante, abençoado pelo derramar de Sua graça, uma límpida visão da unidade entre mim e Você surge, o que satisfaz minha mente."
शङ्कर सत्यमिदं व्रतदान स्नानतपो भवतापविदारि । तावकशास्त्रपरामृतचिन्ता स्यन्दति चेतसि निर्वृतिधाराम् ॥८॥
śaṅkara-satyaṃ idaṃ vratadāna snāna-tapo bhavatāpavidāri । tāva-kaśāstra-parāmṛta-cintā syandati cetasi nirvṛti-dhārām ॥8॥ "Ó Senhor Saṅkara, é dito que pela caridade, pelo rituais, banhos e práticas austeras, as dificuldades do mundo material são eliminadas. Mas, mais do que isso, pelo relembrar das escrituras sagradas e de Suas palavras, o fluxo da imortalidade invade meu coração."
नृत्यति गायति हृष्यति गाढं
संविदियं मम भैरवनाथ ।
त्वां प्रियमाप्य सुदर्शनमेकं
दुर्लभमन्यजनैः समयज्ञम् ॥९॥
nṛtyati gāyati hṛṣyati gāḍhaṃ
saṃvidiyaṃ mama bhairava-nātha ।
tvāṃ priya-māpya sudarśana-mekaṃ
durlabha-manya-janaiḥ samayajnam ॥9॥
"Ó Senhor Bhairava por meio da minha mais elevada fé, percebo-O como o único sacrifício da Unidade, que não é alcançado por meio de inúmeros rituais. Sendo preenchido com sua presença, minha consciência dança e canta intensamente, em êxtase."
वसुरसपौषे कृष्णदशम्यां अभिनवगुप्तः स्तवमिममकरोत् । येन विभुर्भवमरुसन्तापं शमयति झटिति जनस्य दयालुः ॥१०॥ vasu-rasa-pauṣe kṛṣṇa-daśamyāṃ abhinavaguptaḥ stavami-mama-karot । yena vibhur-bhava-marusantāpaṃ śamayati jhaṭiti janasya dayāluḥ ॥ 10॥
"Ó compassivo Senhor, sob a influência de Sua glória e pelo benefício de seus devotos, eu, Abhinavagupta, compus este hino, no décimo dia da quinzena escura do mês Pauṣa. Por meio da meditação e recitação do mesmo, e através da misericórdia do Senhor Bhairava, todos os tormentos e sofrimentos são destruídos deste deserto dos ciclos de nascimentos e mortes."
॥समाप्तं स्तवमिदं अभिनवाख्यं पद्यनवकम्॥ ॥samāptaṃ stavamidaṃ abhinavākhyaṃ padyanavakam॥ "Isto encerra o hino de nove stanzas composto por Abhinavagupta." Sauḥ ⭐
Minhas mais humildes, sinceras e profundas reverencias.
Yuri D. Wolf
सङ्कटमोचन
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