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Navarātri: as nove noites da Deusa

  • Foto do escritor: Yuri Wolf
    Yuri Wolf
  • 29 de set. de 2019
  • 9 min de leitura

Atualizado: 28 de mar. de 2023

𑑉 नमश्चण्डिकायै

oṃ namaścaṇḍikāyai

Reverências à Impetuosa


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A Deusa está chegando...


Hoje (29/09) é o primeiro dia das festividades do grande festival das nove noites, o Navarātri, (nava, nove; rātri noite, em sânscrito), que simboliza o caminho do aspirante espiritual através da jornada do (auto)conhecimento.


As manifestações femininas são o centro das festividades, uma vez que, de acordo com a tradição hindu, a realização do Absoluto – a suprema consciência desprovida de atributos – se dá a partir do mundo dos atributos – representado pelas deusas, a potência energética divina da Consciência Universal.


O desenvolvimento do culto à Devī, o aspecto feminino de Deus, se deu a partir de uma longa transformação de mais de 4.000 anos, através do hinduísmo védico pré-budista – onde os rituais (sacrifícios, austeridades) em si eram mais importantes do que as Deidades – à fase purāṇica pós-budista, quando o processo devocional (bhakti) tornou-se o pilar central da cultura.


Para ilustrar com maior clareza, é importante retratar brevemente o processo de evolução cultural na Índia.


Montando o cenário


A ideologia brāhmaṇica tem seu primeiro conjunto de obras escritas entre os séculos XII a IX aC, a partir da compilação do Ṛgveda, um texto śruti (“aquilo que foi ouvido”), fundamentado numa tradição oral muito mais antiga, de um conhecimento revelado pelo divino e transmitido, sucessivamente, de mestre para discípulo.


Adicionalmente, Sāmaveda, Yajurveda e Atharvaveda completam o grupo de manuscritos conhecidos como Vedas, que e envolvem os "deuses védicos", em sua maioria identificados com elementos e fenômenos naturais – como o ar, o fogo e a tempestade, por exemplo –, e apresentam conjuntos de soluções para manusear a realidade sutil a partir de elaborados procedimentos ritualísticos.


Tais obras são absolutamente complexas e fortaleciam o regime de distanciamento da população face aos assuntos religiosos e à vida espiritual, que dependia do intermédio de sacerdotes (brāhmaṇas) para interagir com o divino, baseando-se no ideário sectário do sistema de castas. De certa forma, tal processo é bastante similar à relação de dependência social, espiritual e material estruturada na Europa durante a Idade Média.


Mais adiante, entre os séculos IX a.C. e I d.C., surgem as Upaniṣads (termo que pode ser livremente traduzido como a “doutrina esotérica”), obras que tem por base filosófica a busca pelo Absoluto (ātman, brahman), realizando a essência comum em todos, independente da posição social, apresentando novos questionamentos e criando novas movimentações no âmbito religioso.


Paralelamente, há o surgimento do budismo, que emerge como alternativa ao exclusivismo do processo brāhmaṇico, convertendo grande porção de vaiśyas (casta detentora da riqueza material, representada basicamente por comerciantes e agricultores), que buscavam maior autonomia.


Entre os séculos III e XIII d.C., surgem os Purāṇas (“antigos”, em sânscrito), textos smṛti (elaborados com inspiração divina, mas estruturados pela mente humana; são a base da tradição Smarta) que representam o movimento de retomada do hinduísmo face ao budismo. São manuais que envolvem saúde, ciência, astrologia, religião, e que permitem – ainda que superficialmente – a inclusão social de outras castas no brāhmaṇismo.


No início da era cristã, os Sūtras (“aforismos”) manifestam-se como um gênero literário que trata de diversos assuntos, e que tem como característica principal a condensação da informação no menor espaço textual possível.


Posteriormente, por volta do século V d.C., surge o Tantra, baseado no culto da natureza (śakti), visando a integração do todo, e que desconstrói os conceitos de pureza sectária do brāhmaṇismo, sob a argumentação de que sem compaixão, não há evolução espiritual verdadeira.


Acima, Vedas, Upaniṣads, Purāṇas, Sūtras e Tantra são diferentes gêneros. As ideias presentes em cada gênero fluem em um processo de conexão evolutiva, de amplificação de ideias e conceitos. Portanto, nenhum dos gêneros deve ser menosprezado.


Por fim, devidamente contextualizados, podemos prosseguir fazendo referência à seguinte relação: de um lado, a manifestação masculina de Deus remete à consciência (imanifesto), enquanto sua contraparte feminina, remete à manifestação.


चण्डीपाठः

Caṇḍīpāṭhaḥ, aquela que dilacera pensamentos


Sobre a aparição primordial de Devī com atributos, destaca-se Śrī Durgā (“inacessível, invencível”), uma vez que a mesma é inicialmente identificada sozinha, e não como consorte de algum outro deus, com papel secundário. Trata-se do retrato de um desejo de emancipação na vida social feminina da sociedade, processo que ocorre dentro dos cultos e das práticas místicas (principalmente tântricas).


Śrī Durgā tem suas origens nos śabaras, uma sociedade não-letrada de agricultores, oriunda de uma área montanhosa no centro da Índia conhecida como Vindhyaśaila, em uma região limiar entre dois reinos, que criava um impedimento de identificação deste povo com outras culturas.


Com a chegada do processo purāṇico de integração à região, Śrī Durgā foi identificada como uma representação de Śakti (potência, força, energia Divina). Tal sincretismo permite que o śabaras se identifiquem com a cultura sânscrita e, em contrapartida, firma a cultura sânscrita como provedora da teologia.


Conforme narrado no Devī Māhātmya, ela é invocada primeiramente sob sua forma universal, Śakti, com o papel central do mito de criação do universo.


Assim, o texto começa narrando a história de um rei que perdeu seus poderes para inimigos e fora abandonado por sua família. Este, eventualmente encontra-se com um brāḥmaṇa, que o questiona, pois mesmo desamparado por todos, filhos, família, funcionários, ainda encontrava-se apegado aos mesmos.

O sacerdote indica que este apego à família é simplesmente fruto do apego ao desejo de retribuição. Assim é, pois dentro do contexto da renúncia, a família é tão passageira como qualquer outra coisa. Então, prossegue inferindo que o rei kṣatriya passa por um processo de ilusão, que é presidido por Mahāmāyā, aquela pelo qual tudo se origina, que atrai as mentes para a ilusão e que também conduz à libertação. É a “soberana do soberano do Universo”.


Ela, através de seu poder entorpecente (tamas), é o que induz Śrī Mahāviṣṇu a dormir sobre as águas de Kāraṇārṇava, o oceano causal (plano que transcende a manifestação material, a realidade última das tradições vaiṣṇavas), processo que precede a emanação do universo material. Porém, Śrī Śakti é também a yoganidrā de Śrī Viṣṇu: o mesmo poder que o adormece é aquele com a capacidade de acordá-lo, para sustentar o universo material.


Então, o brāḥmaṇa relata o episódio referente à invocação da Deusa por Śrī Brahmā (que reside no lótus que brota do umbigo de Kāraṇodakaśāyī Viṣṇu), quando este se vê em apuros face a dois demônios – Madhu (“mel”), que representa o que é doce e gera apego à vida material, e Kaiṭabha (“espinho”), que representa a dor e aversão, que também enredam a alma no saṃsāra (ciclo de nascimentos e mortes).


Os demônios surgem dos ouvidos de Śrī Viṣṇu, enquanto este repousa em Śeṣanāga, a grande serpente, antes mesmo da criação do universo. A partir de lindas oblações, Śrī Brahmā clama à Śrī Ādiśakti (o poder supremo), como a soberana do Universo, para que desperte Śrī Bhagavan (“o venerável”) salvando-o da desgraça, para manifestar o Universo.


Conforme descrito no Devī Māhātmya, versos 54-60, traduzidos por João C. B. Gonçalves.


“Tu és Svāhā! Tu és a oblação! Tu és a exclamação Vaṣat! És a essência da linguagem! Tu és o néctar! Tu estás nos três tempos da sílaba eterna!|54| Mesmo eterna, tu estás no meio tempo, que soa indistintamente. Tu és a própria Sāvitrī, tu és a suprema deusa mãe| Por ti tudo isto se sustenta. Por ti este mundo é criado. Por ti é protegido, ó Deusa, e no final é sempre destruído!|56| Com a forma criadora na origem, com a forma sustentadora na proteção, e com a forma destruidora no final deste mundo, ó mayā do mundo!|57| A grande sabedoria, a mahāmāyā, a grande inteligência, a grande memória, a grande inconsciência, tu és a Grande Deusa, a grande soberana148!|58| Tu és a prakṛti, e tens o poder total sobre os três guṇa. Tu és a noite dos tempos, tu és a grande noite, és a violenta noite da inconsciência!|59| Tu és Śrī, Īśvarī, tu és a modéstia, tu és a consciência caracterizada pela cognição. Tu és a vergonha, tu és a opulência, assim como a alegria, a tranquilidade e a paciência! |60|”


É através deste profundo clamor que a Deusa é colocada como superior ao Trimūrti (trindade Brahmā-Viṣṇu-Śiva), embasando a tradição Śakta, que coloca Śakti (a Deusa) como a figura central do panteão hindu.


Ela então se manifesta, acordando Śrī Jagannātha (“o Senhor do Universo”, um dos muitos nomes de Śrī Viṣṇu). Este, luta por cinco mil anos com os demônios, enquanto Śrī Mahāmāyā os entorpecia em ilusão. Ludibriados, os demônios se colocam numa falsa posição divina, superior à própria consciência absoluta ali representada por Aquele que tudo permeia (Śrī Viṣṇu) e perguntam-no qual benção Ele deseja. O mesmo responde que sua dádiva é a morte de ambos através de sua providência, finalmente aniquilando-os.


Mais adiante, ainda no Devī Māhātmya, Śrī Devī manifesta-se para combater um novo desequilíbrio dhármico, provocado por Mahiṣāsura, o demônio-búfalo que representa o egoísmo e a ignorância, que derrotou o rei dos devas, o Senhor Indra, e usurpou o controle do plano celestial.


Assim, o Śrī Indra e os demais devas recorreram aos senhores supremos do Universo, o Trimūrti, que prontamente invocam Ādi Paraśakti, a Suprema Devī, sob a forma de Śrī Durgā – que recebe então não somente as armas da trindade suprema, como também as aparelhas de Indra, Agni, Varuṇa, Sūrya e Yama e dos demais Devas – deuses do céu, fogo, água, sol e morte, respectivamente. Por fim, é presenteada com um leão por Himavat – a personificação dos Himālayas. Assim, Śrī Durgā desce à Terra e derrota Mahiṣāsura e seu exército após sangrenta batalha.


Subsequentemente, Śrī Durgā é invocada a partir de Śrī Pārvatī (consorte de Śrī Śiva), novamente para enfrentar os asuras (demônios) Śumbha e Niśumbha, que representam, respectivamente, a vaidade e a autodepreciação, e que, devido à prática de severas austeridades, também haviam alcançado grandes poderes, concedidos por Śrī Brahmā.


Devido à sua Suprema beleza de Devī, Śumbha e Niśumbha tentaram conquistá-La. Porém, foram advertidos pela Mesma que Ela só se entregaria a quem pudesse vencê-La em batalha. Os irmãos, tão poderosos, não acreditaram que uma mulher poderia se impor desta maneira e enviaram um exército para trazê-la à força. Sob sua forma colérica, Śrī Caṇḍī, aniquilou a todos pela entoação do bīja (semente mântrica) “ हुं ” (huṃ) e por seu leão.


Enfurecidos, os supremos asuras enviaram dois de seus generais, Cānda e Muṇḍa, que personificam a paixão e a ira, respectivamente. Quando chegaram para enfrentar Śrī Caṇḍī, Esta se enfureceu, proporcionando a manifestação de Śrī Kālī, conforme descrito no Devī Māhātmya:


"Das sobrancelhas de sua testa brotou imediatamente Kālī, com sua face assustadora, carregando espada e laço. Ela portava um estranho bastão coroado por um crânio e tinha uma guirlanda de cabeças humanas, estava envolta em uma pele de tigre, e parecia horrorosa com sua pele macilenta, sua boca escancarada, aterrorizando com sua língua para fora, com olhos afundados e vermelhos, e uma boca que enchia os quatro cantos com rugidos."


Com grande violência e sem qualquer dificuldade, Śrī Kālī decapita Cānda e Muṇḍa, que lhe dá o título de Cāmuṇḍā, elevando-a ao nível de uma mātṛkā (Divina Mãe).


Enfurecidos, Śumbha e Niśumbha decidem por enviar seus serviçais mais poderosos, incluindo o demônio Raktabīja – cujo nome significa “semente de sangue” – , famoso asura que tinha o poder de multiplicar-se para cada gota de sangue sua que tocasse o solo. Para derrota-lo, Śrī Kālī bebe o sangue das feridas abertas antes que este chegasse ao chão.


Neste momento, os Deuses que assistiam à batalha enviam suas śaktis personificadas (potências femininas), as aṣṭamātṛkās (oito deusas-mãe):


· Brāhmaṇī (Śrī Brahmā);

· Māheśvarī (Śrī Māheśvara, um dos nomes do Senhor Śiva);

· Ambikā (ou Kaumārī, śakti de Śrī Kārtikeya, deus da guerra);

· Vaiṣṇavī (Śrī Viṣṇu);

· Indrāṇī (Indra);

· Vārāhī (o javali, Śrī Varāha, terceiro avatāra de Śrī Viṣṇu);

· Cāmuṇḍā (Śrī Kālī, conforme exposta acima, que já se encontrava no campo de batalha);

· Nṛsiṃhī (Śrī Nṛsiṃha).


Finalmente, Śumbha e Niśumbha decidem enfrentar pessoalmente a situação e partem para a batalha. São aniquilados por Śrī Caṇḍī e o Dharma é restaurado no cosmos.

Assim, Śrī Durgā é um conjunto supremo de qualidades, cujos atributos vêm de diferentes Devas. Eles são partes, Ela é inteira. Assim, não é filha de um deva em específico, mas filha de todos. É ayonija, não-nascida do ventre, sem mãe. Isso a estabelece como Mahādevī, a Deusa dos deuses. É, assim como o Senhor Śiva e o Senhor Viṣṇu, svayambhū (auto-existente).



O Navarātri


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Śrī Durgā e seu leão aniquilando o demônio Mahiṣāsura.

Neste, que é um dos maiores festivais de toda a Índia, as celebrações ocorrem de duas maneiras principais.

Em uma delas, as nove noites são divididas em três blocos de três dias, representando três aspectos de Śrī Sakti: Śrī Durgā, Śrī Lakṣmī e Śrī Sarasvati.


Assim, o festival retrata as fases pelo qual passa a consciência individual na busca pelo evolução e elevação por meio do autoconhecimento.


Nesta lógica, Śrī Durgā representa a superação do aspecto tamásico universal (tamas/tamoguṇa), o torpor que enreda a consciência na escuridão da ignorância.


Śrī Lakṣmī representa o aspecto ativo universal (rajas/rajoguṇa), as nobres qualidades que a consciência individual necessita para alcançar a meta última.


Por fim, Śrī Sarasvatī representa o próprio Conhecimento, a qualidade de equilíbrio universal (sattva/sattvoguṇa), o êxito do caminhante que vence sua própria escuridão e desenvolve as auspiciosas qualidades em seu ser.


Em outra versão das celebrações, a mais difundida, todas as nove noites são direcionadas à adoração de Śrī Durgā, sob diferentes aspectos de seu esplendor, que culminam na Vijayadaśamī, festividade que celebra a vitória da Deusa diante do demônio Mahiṣāsura, conforme mencionado mais acima.


No primeiro dia do Navarātri, a Deusa é adorada sob a forma de Śailaputrī (śaila: montanha; putrī: filha), a Filha da Montanha, identificada com a Senhora Pārvatī – yoginī filha dos Himalaias, consorte de Śrī Śiva.

Em sua iconografia, montada em Nandi, o touro branco de seu consorte, carrega um tridente e uma flor de lótus em suas mãos. É considerada uma encarnação direta de Śrī Mahākālī, sua cor é o vermelho e representa o vigor e ação.


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Śrī Śailaputrī.

Seus mantras são:


देवी शैलपुत्र्यै नमः॥

oṃ devī śailaputryai namaḥ

“Reverências à Deusa filha da montanha.”


E também a Śailaputrī Prārthanā (oração à Filha da Montanha)


वन्दे वाञ्छितलाभाय चन्द्रार्ध कृतशेखराम्

वृषारूढाम् शूलधराम् शैलपुत्रीम् यशस्विनीम्


vande vāñchitalābhāya candrārdha kṛtaśekharām ।

vṛṣārūḍhām śūladharām śailaputrīm yaśasvinīm ॥


“Presto minhas reverências à Senhora Śailaputrī, que concede as melhores bênçãos aos devotos. A lua em forma crescente é, como uma coroa, adornada em sua testa. Ela está montada no boi, e segura uma lança em sua mão. Ela é a Gloriosa [Mãe Durgā].”


Nos próximos dias, teremos as demais postagens com as demais deusas reverenciadas neste grandioso festival.


Minhas mais humildes, sinceras e profundas reverências,


Yuri D. Wolf – संकटमोचन

 
 
 

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